terça-feira, 26 de abril de 2011

Porque a natureza ?

Ultimamente dois acontecimentos me chamaram muito a atenção e talvez resumam, de um modo geral, as concepções da relação entre homem e natureza que vigora hoje em dia na sociedade. Indo a caminho do ponto de ônibus vi um rapaz chutando uma cadelinha pequena, que não tinha condições de se defender de tal atrocidade. A única coisa que o pobre animal fez foi fugir depois de levar dois coices. O outro fato foi o desmantelamento de uma quadrilha que matava cães para vender sua carne para restaurantes. Fiquei pensando nestas e em outras situações de agressão a fauna e a flora, bem como a destruição dos elementos da paisagem. Procurei em um passado longínquo onde foram edificadas as bases filosóficas para que, dentre os seres humanos, se disseminasse a idéia de que a natureza, os animais e as plantas passassem a ser consideradas como simples máquinas animadas, como objetos para a ação dos homens. Percebi que dentre alguns fatores para que estes fatos acontecessem estavam na edificação do monoteísmo judaico-cristão e na exacerbação da razão como a única forma válida de conhecer.
Reportei-me aos primeiros filósofos gregos – Tales e Heráclito – e percebi que eram filósofos panteístas, ou seja, aqueles que pensam que a matéria é viva, que todas as coisas estão cheias de deuses, de poder de criação e que o mundo está em constante fluxo e transformação. Neste sentido, para estes filósofos existia uma relação de respeito do homem para com outros seres, eles eram considerados divinos – Deus se identificava com a matéria, portanto Deus não estava acima da montanha como diz a Bíblia. Outra questão estava relacionada com a razão. Não existia apenas uma forma de conhecimento válida – a razão. O conhecimento era dado pelo conjunto sentidos e razão. Porém, este processo foi modificado pela filosofia de Pitágoras de Samos, Parmênides, Sócrates, Platão, num primeiro momento, e logo depois com Tomás de Aquino com a escolástica. Estes filósofos, de uma forma geral, contribuíram sobremaneira para a edificação do cristianismo com as idéias da existência de um Deus diferente da natureza, do homem como sendo sua imagem e semelhança, com a falácia da existência de uma alma intelectiva, da criação do reino dos céus, apropriada através do mundo das idéias de Platão, e para que a razão, somente ela, fosse considerada a única maneira de se chegar à verdade, desprezando os sentidos, a res extensa e tudo o que advém da natureza. Portanto, o cristianismo carrega a idéia de que o homem, imagem e semelhança de Deus, possuidor de uma alma intelectiva, vive uma vida efêmera na Terra, e nela se prepara para viver a vida eterna no reino dos céus, junto a Deus. A natureza, a desalmada, em um nível inferior ao ser humano, por não possuir alma, seria apenas um objeto, o meio do homem manter sua parte imperfeita funcionando durante seu trajeto na Terra. Não há no cristianismo a identidade, uma igualdade, entre homem e natureza. Não há uma teoria da dependência entre o homem e a natureza, algo novo, que os iguale. O homem sempre aparece como um ser superior, imagem do seu Criador. Como Espinoza dizia: “não há uma filosofia do corpo que complemente uma filosofia da mente”, como existia através dos primeiros pré-socráticos aqui mencionados.
A outra categoria, a razão, a abstração, sempre foi colocada acima do conhecimento emanado pela res extensa. A natureza possui um conhecimento que emana das relações que cada espécie estabelece com outras espécies e com os fatores abióticos. Desta relação é que se verifica o movimento, a transformação e a capacidade de produção de eventos inesperados, criativos, que são intrínsecos a ela, e que nós, seres humanos, somos dependentes. Fico imaginando o que seria o mundo sem o papel de polinizadores que as abelhas e outros organismos realizam. Praticamente não haveria alimentos para nós seres humanos! Ou então sem a produção de oxigênio por parte do bacterioplâncton e fitoplâncton. Não existiria a vida como a conhecemos e nem nós seres humanos! Porém, neste processo histórico, que culminou na exacerbação da razão através das idéias dos cientistas do século XVI e XVII, principalmente, de Bacon e Descartes, a natureza foi dessacralizada por completo, agora não apenas como a desalmada, do cristianismo, mas também como o irracional. Para Bacon, pai do indutismo, a natureza tinha que ser “acossada em seus descaminhos”, “obrigada a servir” e “escravizada”. Devia ser “reduzida à obediência”, e o objetivo dos cientistas era “extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos”. Esta frase também revela a outra faceta de Bacon, a de que ele participava diretamente no tribunal do julgamento do que se convencionou a chamar de bruxas, mas que eram pessoas que, através da alquimia, estabeleciam uma relação de respeito com a natureza. Outro filósofo, René Descartes, através de sua máxima: “Penso, logo existo” atribuiu existência somente a aquilo que pensa, ou seja, ao homem. Os outros organismos eram considerados como máquinas animadas. É ai que me lembro de uma passagem da Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera, mais especificamente do capitulo O Sorriso de karenin. Este autor conta que Nietzsche, ao final de sua vida, ao sair de um hotel em Turin, viu um cavalo que apanhava de seu condutor. Nietzsche, então, correu para o cavalo e abraçando-o pediu desculpas por Descartes. Foi ai que Nietzsche, para o mundo, passou a ser considerado um louco. Mas este fato mostra a sua extrema sensibilidade e um grande conhecimento filosófico e histórico. A este perdão de Nietzsche, acrescento um outro perdão, pelo cristianismo, aos animais e a natureza.
Estes, para mim, o monoteísmo judaico-cristão e a exacerbação da razão como a única forma de conhecer, juntamente com o processo capitalista, são os grandes responsáveis pela desvalorização da res extensa, do corpo, ou da natureza e, consequentemente, os grandes precursores da crise ambiental que o mundo se encontra mergulhado. Neste sentido, vejo que há lacunas que devem ser preenchidas através de um outro sentido de religião, que remeta aos primeiros sábios pré-socráticos, um outro sentido de razão e um outro sentido de desenvolvimento, no capitalismo atual, do fundamentalismo de mercado que se instaurou no mundo depois de meados de 80. E acrescento, também, necessitamos de um outro sentido para o desenvolvimento sustentável do que aquele que vem sendo proposto pela ONU, pois não há meios de manter crescimento econômico com preservação e conservação da natureza. O capitalismo é um gangster, um sistema econômico que não busca a preservação e conservação da natureza e o bem estar do homem, sua história e sua filosofia mostram que se trata de um sistema que, desde o seu nascimento até hoje em dia, sempre se mostrou expropriador e explorador, um sistema lapidador. Isto se verificou tanto durante o domínio português e espanhol pelo mundo, a partilha da África e da Ásia no século XIX, da transformação dos homens em simples objetos ou instrumentos em seu território de origem, como, por exemplo, nas minas de carvão da França – situação exposta, jornalística e poeticamente, por Emile Zola em seu livro Germinal, da necessidade das grandes guerras para poder se manter – gerar o consumo e o subconsumo, da expansão capitalista movida pelos EUA na década de 60, responsável pela derrubada de governos e implantação de ditaduras, como ocorrido em quase todos países latino-americanos, inclusive no Brasil, e da expansão capitalista de meados da década de 80, conhecida como neoliberalismo, onde se aprofundou, sobremaneira, a exclusão social de grande parte da população mundial. Aqui, no Brasil, a abertura da economia ao capitalismo estrangeiro foi posta em prática, de forma violenta, por Fernando Collor de Mello e por Fernando Henrique Cardoso e está exposta no livro “O Desmonte da Nação em Dados”, que retrata criticamente o balanço dos dois mandatos do governo do FHC.
Desta forma, sinto que estas categorias aqui expostas devem ser pensadas, discutidas e acrescentadas a qualquer proposta de educação, em seu espectro maior, da educação ambiental, para que seja resgatado ou construído o elo, perdido ou jamais alcançando, entre o homem e os demais seres vivos e elementos da paisagem. Termino, aqui, com uma frase daquele que foi um arauto da liberdade, e que entregou a sua própria vida à causa revolucionária: Ernesto Che Guevara – “só o conhecimento nos faz responsáveis”. Assim, é preciso sempre estudar, caminhar pelos longos percursos da cultura filosófica, dolorosos e saborosos, para que possamos compreender a realidade em sua totalidade a fim de transformá-la. Esta é minha luta: pesquisar a relação histórica entre homem e natureza a fim de entender e provocar discussões democráticas, por que não revolucionárias, na sociedade. PS: Parte das idéias contidas neste artigo, escritas, de forma mais elaborada, por mim e pelo Professor da UNESP/Bauru Dr. Renato Pirani Ghilardi, estão expostas no artigo intitulado Necessidades Atuais Para a Educação Ambiental: Serão Possibilidades? que foi publicado na Revista Cientifica Enciclopédia Biosfera. Link: http://www.conhecer.org.br/enciclop/2010/necessidades.pdf

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